Posted On 26/08/2013 By In Portugués, Teología With 3744 Views

Batismo como rito de iniciação frente ao fenômeno de desregulação e desinstitucionalização religiosa.

1      Introdução

Pretendo neste breve estudo, refletir sobre a prática do batismo e sua relevância na vida das pessoas, principalmente das novas gerações, frente à realidade de desinstitucionalização e desregulação religiosa que vivemos. Entendo por desregulação religiosa as mudanças que estão ocorrendo no campo religioso e que modificam a prática e compreensão, neste caso, do batismo. A desinstitucionalização é parte deste movimento e significa o afrouxamento dos vínculos institucionais e afetivos dos membros batizados à suas respectivas comunidades de fé e às atividades lá realizadas.[1] Estão relacionadas, sendo a desregulação algo mais interno das comunidades religiosas e a desinstitucionalização algo mais externo, da cultura e sociedade como um todo.

Julio Cézar Adam

Julio Cézar Adam

Tomo como ponto de partida a realidade do Brasil, onde as igrejas históricas, dentre as quais se encontra minha igreja (IECLB), enfrentam um significativo distanciamento de seus membros, principalmente as novas gerações, das práticas e das vivências comunitárias. Ao mesmo tempo, estes mesmos membros, segundo pesquisas recentes, não necessariamente abandonam a crença religiosa.[2] Muito pelo contrário, há, inclusive, um incremento da religiosidade e da crença. Vive-se um verdadeiro crer sem pertencer, através de uma crença subjetiva, privada, bricolada, mágica, extremamente pragmática e ligada à experiência pessoal. No que se refere especificamente à prática do batismo, nas igrejas históricas, há sim, uma adesão isolada ao batismo das crianças, e inclusive a busca e adesão da confirmação dos adolescentes, mas um total abandono da vivência comunitária.

Além disso, o contexto religioso em questão se caracteriza por um incrível crescimento de movimentos religiosos e novas igrejas de cunho neo-pentecostal e carismático, que atrai inúmeros visitantes transitórios e interessados, e onde o batismo de adultos e o re-batismo desempenham um papel marcante.  O batismo de adultos e elementos que lembram em muito a prática batismal dos três primeiros séculos[3] (como os ritos de exorcismo e renúncia ao mal, imersão nas águas, batismo no Espírito Santo, mudança radical de vida, entre outros aspectos), compõem este cenário.

Parece-me importante entender este fenômeno da desregulação e desinstitucionalização, e ao mesmo tempo refletir liturgicamente sobre a prática do batismo nas igrejas históricas frente ao fenômeno. Suspeito que, por um lado, o abandono da vida comunitária pós-batismo é decorrência da dificuldade da própria Igreja em torno à compreensão do batismo e à manutenção da identidade confessional, ou seja, há uma dificuldade interna na Igreja. Por outro lado, as mudanças, características da modernidade, têm colocado a prática e compreensão do batismo em movimento, o que seria uma mudança externa à instituição. Em que medida estas duas dificuldades estão relacionadas, é de ser perguntar.

2      A religião e o batismo a partir do aspecto externo da desinstitucionalização

Uma das principais características das mudanças no campo religioso tem a ver com a própria experiência humana na modernidade.[4] Talvez desde sempre, a religião e a religiosidade existem não para ser entendidas, mas para serem subjetivamente experimentadas, como uma forma de contato pessoal com o sagrado, na busca pelo sentido da existência. Na atualidade esta característica se tornou decisiva para se viver a religião. A experiência subjetiva revigora a própria religiosidade, em uma verdadeira revanche do sagrado frente ao processo de secularização. Berger chega a falar, inclusive, de uma dessecularização.[5] Bauman aponta o próprio fundamentalismo religioso como constitutivo da modernidade.[6]

O reavivamento religioso intimista é uma resposta frente ao não cumprimento das promessas da modernidade. “Ainda se anseia por uma existência mais satisfatória e, surpreendentemente, a modernidade recicla mitos tradicionais que são imensos reservatórios de sentido e um vigoroso protesto contra o nonsense.”[7]

As religiões enquanto código institucional restrito perdem seu protagonismo e liderança, mas não perdem seu potencial de metamorfosear na individualidade das pessoas e da cultura popular. Eventos midiáticos compõem neste sentido, uma verdadeira religiosidade fora da religião institucional, mas, ao mesmo tempo alimentados por conteúdos e práticas das próprias matrizes religiosas institucionais. “É sagrado o texto, é religiosa a experiência que – não importando sua origem – ajudam (a pessoa) a responder a desafios, elaborar sentidos e inaugurar relações fecundas com a totalidade da vida.”[8]

Poderíamos, por isso, falar de uma verdadeira destradicionalização da religião. Segundo Paul Heelas a destradicionalização afeta não apenas a esfera religiosa, mas todas as demais, como a família, política e a tradição em geral, onde há uma nítida substituição da autoridade.

“Detraditionalization involves a shift of authority: from ‘without’ to ‘within’. It entails the decline of the belief in pre-given or natural orders of things. Individual subjects are themselves called upon to exercise authority in the face of the disorder and contingency which is thereby generated. ‘Voice’ is displaced from established sources, coming to rest with the self.”[9]

O fenômeno tem sido abordado em dois enfoques: Um que vê a destradicionalização de forma radical, ou seja, com o fim definitivo da tradição, e outro que a vê apenas como uma mudança em torno às tradições, mas não necessariamente seu radical desaparecimento. Em ambos os casos, a perda do vínculo externo se desenvolve basicamente pelo processo de individualização, por um lado, e por outro, pelo processo de diversificação, pluralismo e fragmentação da cultura e da sociedade, ambos como consequências direta da modernidade. O modelo capitalista e o consumo estão diretamente relacionados com este processo de mudança.[10]

Ribeiro fala sobre desregulação religiosa, a qual se caracteriza não só pela contínua queda da pertença religiosa, mas basicamente pela autonomia por parte dos praticantes de interpretarem e viverem a religião a seu modo. Desregulação se caracteriza ainda pelo crescimento dos sem-religião e a religiosidade difusa, principalmente entre jovens.[11]

Hervieu-Léger usa o termo “desinstitucionalização”, que, segundo ela se caracteriza pela “A perda da força da observância, o desenvolvimento de uma religião “à la carte”, a proliferação das crenças combinadas a partir de várias fontes, a diversificação das trajetórias de identificação religiosa, o desdobramento de uma religiosidade peregrina: todos esses fenômenos são indicadores de uma tendência geral à erosão do crer religioso institucionalmente validado.”[12]

Na desinstitucionalização a bricolagem e a reinvenção religiosa passam a circular livremente e cada um, individualmente, elabora seu sistema de crença à la carte e com autonomia, totalmente à revelia da instituição religiosa. O estilo emocional e espetacular, a catarse, o mágico, a experiência íntima, a individualização e a livre disposição dos produtos religiosos por parte do crente são os critérios para a vivência religiosa, como aponta Bobsin

“Lastreadas pela globalização, as ideias religiosas ou as mercadorias circulam livremente pelo mundo, com a diferença de que estas não sofrem prejuízos, ao passo que aquelas assumem novas características. Pode-se tomar como exemplo a ideia da reencarnação. Arrancada do mundo do hinduísmo, Índia, é reinterpretada por Allan Kardec na Europa do século XIX e ressignificada pelo espiritismo brasileiro, sendo transfigurada pela New Age, perdendo, assim, não só o seu território e sua função social numa sociedade de castas ou hierárquica, mas também seus impulsos éticos.”[13]

Para falar do fenômeno Hervieu-Léger usa a metáfora do peregrino e do convertido. Tanto o peregrino, quanto o convertido estão no centro e são protagonistas do seu modo de crer. Ambos estão em movimento em nome da crença. Enquanto o peregrino circula na busca de elementos religiosos tradicionais combináveis com sua biografia, fazendo uma bricolagem, o convertido escolhe uma proposta na qual possa definitivamente se identificar e pertencer e que o envolva no mais profundo do seu ser, através da experiência. Para o convertido, já que a religião não muda mais o mundo, ela muda ao menos o indivíduo.

“No âmbito da religião, como nos demais, a capacidade do indivíduo para elaborar seu próprio universo de normas e de valores a partir de sua experiência singular, tende a impor-se, como vimos, vencendo os esforços reguladores das instituições. Os crentes modernos reivindicam seu direito de ‘bricolar’, e, ao mesmo tempo, o de ‘escolher suas crenças’. Mesmo os mais convictos e os mais integrados a uma determinada confissão fazem valer seus direitos à busca pessoal pela verdade. Todos são conduzidos a produzir por si mesmos a relação com a linhagem de crença na qual eles se reconhecem.”[14]

A bricolagem religiosa dos peregrinos não significa necessariamente um vale-tudo, pois de alguma maneira a validação a partir de um princípio organizador ou de um grupo.

“[…] quanto mais os indivíduos “bricolam” o sistema de crenças correspondente a suas próprias necessidades, tanto mais eles aspiram a intercambiar esta experiência com outros indivíduos que partilham o mesmo tipo de aspirações espirituais. […] Para estabilizar as significações que produzem a fim de dar um sentido a sua experiência cotidiana, os indivíduos raramente podem se contentar com sua própria convicção. Eles têm necessidade de encontrar no exterior a garantia de que suas crenças são pertinentes.”[15]

Exatamente por isso, aumenta o consumo de bens culturais como livros, filmes, revistas, músicas, etc que de alguma maneira validam e dão sentido à nova forma de crer.

Por último, cabe mencionar que o fenômeno da religião em movimento tem consequências diretas para o comportamento ritual. Segundo Bieritz, nas sociedades modernas, os rituais cada vez mais perdem seu poder transformador. Eles sucumbem à tendência de privatização e são deslocados para o âmbito do tempo de lazer. A participação em rituais fica por conta da ‘livre’ escolha dentre uma oferta de possíveis alternativas, os rituais são tidos como ocupações voluntárias do tempo de lazer, e grandemente excluídos dos processos centrais e econômicos, p. ex.

Segundo o autor, sob a pressão de sempre novos impulsos de individualização, desaparece sempre mais a necessidade de um acompanhamento ritual do ciclo de vida, bem como da capacidade de comunicação ritual. Estaria ocorrendo um deslocamento dos ritos para o âmbito da carreira, do consumo, do entretenimento, da terapia, como uma forma de legitimação e orientação de papéis.[16]

As consequências desta mudança, no caso dos ofícios casuais, podem ser percebidas em casos como o adiamento do batismo por diversos anos e a bênção matrimonial só após vários anos de vida conjugal. Os clássicos rituais liminares se transformam em uma espécie de novos rituais de orientação e recreação, conscientemente celebrados no caminho, nos planos do curso de vida. Eles não marcam mais a assunção de novos papéis, mas uma confirmação de papéis já exercidos. Parece que estamos a presenciar o surgimento de novas necessidades rituais que se sobrepõem às necessidades originais, vinculadas aos momentos de transição da vida.

3      Perda da força mobilizadora do batismo diante da mudanças no campo religioso

Como vimos, o fenômeno da religião em movimento se caracteriza principalmente pela não participação nos ritos e atividades da comunidade e pela livre vivência e interpretação individual dos conteúdos religiosos. Em ambos os aspectos, a autonomia do indivíduo diante de sua crença e a pouca ou nenhuma ingerência da instituição religiosa frente a esta autonomia são marcas predominante. Este fenômeno vai obrigatoriamente gerar mudanças tanto na prática como na compreensão do batismo, como rito de iniciação cristã. Houve mudanças na prática e compreensão do batismo, muito antes da chamada modernidade. Certamente, no entanto, mudanças ocorridas no passado virão a ter relação direta – não isoladamente, obviamente –com as mudanças que percebemos hoje no campo religioso.

Originalmente o batismo era um rito de iniciação para uma sociedade alternativa. Ele se caracterizava-se por um todo complexo antes, durante e após o banho batismal. Neste sentido, em seu aspecto antropológico, o rito do batismo marcava não só a passagem para dentro da instituição Igreja, mas determinava a essência da vida própria Igreja, definia o ser cristão. Por isso, nada era mais importante para a comunidade cristã que sua prática batismal. Do batismo decorria o restante da vida cristã.[17]

Com o passar dos séculos, no entanto, houve uma perda significativa da força mobilizadora e agregadora do rito. O batismo fragmentou-se enquanto rito e seu sentido teológico e eclesiológico foi sendo racionalizado, teologizado, distanciando da vivência integral da fé comunitária. Historicamente ouve um reducionismo ritual na Igreja.[18] Os sacramentos foram submetidos a uma visão jurídica, sendo a pergunta pelo mínimo necessário para que o rito tivesse validade o critério. No caso do batismo seria um ato com água ao qual se junta a palavra de instituição. E o próprio ato com água se reduziu à aspersão de algumas gotas de água. Isto foi prejudicial para a compreensão do rito, como aponta Brand:

“Na medida em que ele não mais expressa a passagem de fora da comunhão para dentro dela como sendo um passo de tremenda importância; na medida em que não fornece um evento-base a partir do qual pode ser derivado todo o complexo de conceitos batismais; e na medida em que não é obviamente uma ação da Igreja toda, o rito trai aqueles que são batizados […].”[19]

Também por causa da visão jurídica, a relação do batismo com os demais ritos e atividade da comunidade foi se perdendo. O batismo passou a ser um rito isolado das outras atividades do cristão.[20] Aqui temos elementos que hoje certamente contribuem para a individualização do batismo e seu sentido mágico e isolado na vida do crente. Tornou-se um rito para o indivíduo, independente do engajamento comunitário.

Outro fator que pode ter gerado desagregação tem a ver diretamente com a antiqüíssima prática do batismo de lactantes. Com esta prática – teologicamente justificável – o rito se converte rapidamente em um rito de nascimento, de maternidade e paternidade. O batismo se torna mais um rito do ciclo da vida, que um rito de iniciação à uma sociedade alternativa.[21]

É comum que liturgias de batismos encerrem com uma benção ao pai e à mãe, assim como também é comum o uso de Marcos 10. 13-16 – que não é um texto batismal – como uma das principais leituras bíblicas. Estes ritos agregados ao batismo são importantes, mas mesclados ao batismo, acabam ofuscando sua especificidade como rito de iniciação. Por isso, as pessoas levam seus filhos para serem batizados, mas dissociam a adesão à vida comunitária posterior como conseqüência intrínseca do batismo. Temos aqui claramente um tipo de bricolagem autônoma por parte dos crentes. Ao rito se dá um significado independente do ensino da instituição.

No contexto do Brasil, a forte influência da religiosidade popular e sincrética imprimiu na cultura a compreensão do rito de batismo como um passe mágico para salvar os bebês de males do corpo e da alma. O batismo funciona como proteção, amuleto, contra a morte e doenças e, em casos de morte, passaporte para o céu. Esta é certamente uma das formas de bricolagem ritual mais antigas e permanentes que temos.

Outra distorção tem a ver com a compreensão em torno da figura dos padrinhos e madrinhas. Estes cumprem hoje quase que tão somente um papel social do que de fato a função batismal de padrinhos/madrinhas de fé. Por isso, não existe um trabalho contínuo de formação e vivência do batismo após o rito batismal,[22] se depositando toda a catequese pós-batismal para o período do ensino confirmatório. Por detrás desta compreensão social dos padrinhos e madrinhas temos um exemplo típico da individualização do rito e seu uso autônomo como rito de lazer, de entretenimento, consumo e reforço de vínculos pessoais e sociais, como aponta Bieritz.

Relacionado a este último aspecto, junta-se um outro fator de fragilização na vivência e compreensão do rito: a fragmentação do próprio rito. Já a Comissão de Fé e Constituição, do Conselho Mundial de Igrejas, em 1997, chamava atenção para isto:

“Baptism has often been separated from catechesis and from eucharist and community life. The actual water-bath and admission to the Lord’s table have frequently been dissociated. Confirmation has sometimes been held years after baptism itself, without baptismal reference. The process of baptism has too seldom known relationship to life in its many dimensions, not least the ethical. In many instances water-baptism and the gift of the Spirit have been disconnected, often becoming two «baptisms.”[23]

Em torno à própria confirmação há outras confusões e fragmentações. Por necessidades práticas, já no séc. V ela estava separada do ato do batismo. A unção feita pelo bispo era feita quando as crianças atingissem os 7 anos de idade, como um novo sacramento, o crisma. Os reformadores fizeram da confirmação um período de catequese, culminando num ato litúrgico. Em ambos os casos, a confirmação significava uma condição para a participação na ceia do Senhor.[24]

Diante do exposto uma vivência e adesão mais plena do batismo fica realmente muito comprometida. Ou seja, as distorções ocorridas no seio da Igreja não só dificultam um vivência do rito como iniciação cristã, mas também reforçam e abrem espaços para compreensões e prática no campo religioso em movimento. É quase que um milagre que a Igreja se sustente a partir de um rito de iniciação, que já não cumpre seu papel, agravado ainda por um contexto de desregulação e desinstitucionalização religiosa. Neste cenário, proliferam-se tendências de re-batismo e outras buscas isoladas pela eficiência e coerência do ritual.

Vemos assim, claramente o peregrino e o convertido e sua relação com o batismo no contexto atual. Para o peregrino, o batismo vai compor sua bricolagem, autônoma e individual. Para o convertido, um re-batismo ou uma re-significação do batismo vai ser necessário.

4      Conclusão: três possibilidades

Diante da realidade acima exposta faz-se necessário repensar a prática do batismo hoje. Não é tarefa fácil pensar o batismo e resgatar seu significado e seu sentido para dentro da vida das pessoas. Convém lembrar, no entanto, que as pessoas de um modo geral continuam sedentas por sentido e pertencimento e buscam repostas para seu anseio a partir da religião e, em especial, através da adesão ao rito do batismo. A reflexão em torno à prática do batismo pode vir, pois, ao encontro deste anseio. Sugiro três caminhos para isto.

a)     Batismo líquido: Ao que tudo indica há sim uma grande mudança na forma das pessoas vivenciarem a crença. O crer sem pertencer resume esta grande tendência dos tempos líquidos. Surgem novas formas de relacionar-se com os ritos da tradição: Os ritos marcam não mais para dentro da tradição e da instituição, mas marcam a vida das pessoas, e a forma como marcam e são interpretados é tarefa da pessoa, em sua individualidade. O peregrino, batizado ou não, está em busca de expressão, afirmação, orientação e comunhão para sua fé individual. A bricolagem religiosa é algo feito não só pelas pessoas, individualmente, mas é algo feito pela própria cultura. A mídia, cultura do cotidiano e a cultura pop estão profundamente atravessados por elementos religiosos em uma complexa construção bricolada. Diante deste quadro, o batismo torna-se apenas um elemento a mais dentro de um universo de elementos religiosos à disposição. Seria talvez o caso de aceitar simplesmente que grande parte dos batizados fazem parte de uma comunidade líquida e que a experiência do batismo é vivida fora da vivência única e necessariamente comunitária. O exemplo da comunidade de Taizè, segundo Hervieu-Léger, seria um típico exemplo de vivência peregrina da fé e do batismo. Mais do que investir no esclarecimento teológico do sentido do batismo como rito de iniciação, a Igreja deveria divulgar de forma ampla, usando os meios de comunicação de massa ou através de movimentos e ritos abertos – como o movimento de Taizè, ou grandes encontros eclesiásticos – o sentido de ser cristão e, assim, expandir o chamado para responsabilidade humana, a ética, o compromisso social e ambiental. Teríamos neste caso a vivência de um batismo líquido, no sentido de Bauman,[25] em uma comunidade planetária, mais que local.

b)    Inculturação do Batismo: A cultura contemporânea é marcada pela diversidade e é composta por pessoas que carecem de orientação. Inculturar o batismo talvez seja uma das melhores formas de fazê-lo compreesnível e acessível às pessoas de hoje, não esquecendo que: “Cultural elements are integrated into the baptismal ordo, not merely because they are meaningful and relevant to the local congregation, but above all because they are able to illustrate the core of Baptism with catechetical clarity.”[26] Não seria a inculturação um contraponto para a bricolagem? Uma forma de bricolagem? A Igreja neo-pentecostal “Bola de Neve Church” certamente exagera na inculturação, quando realiza o batismo de seus jovens em um parque aquático, sendo o banho batismal um salto no grande escorredor para dentro da piscina. As igrejas históricas não chegariam a tal extremo, mas poderia encontrar outros meios de inculturar o batismo, de forma que ele seja vivido. Os ritos cristão são uma forma de a comunidade acompanhar e carregar seus membros em amor através das passagens da vida.[27] Pessoas, em especial os jovens, carecem de vínculos, conexão com pessoas, com ideias e princípios, buscam canais para construir e fortalecer a identidade, buscam formas de expressão para suas vidas, suas tantas jornadas e passagens e as crises por elas geradas, carecem de ritos que ajudem a lidar com a culpa, ritos de perdão e reconciliação que possibilitem começar de novo, buscam, de diferentes formas – como consumo e prazer –sentido para a vida. Todos estes elementos fazem parte do sentido do rito do batismo. Assim com na igreja primitiva, o rito teria que ser hoje inculturado. A inculturação do rito do batismo não deve abafar a essência do rito, nem esquecer o critério contra-cultural do cristianismo, mas, como diz Chupungco “Baptism is not only a celebration of faith: it also engages humans Who are steeped in their culture and traditions.”[28] Se faz necessário investigar a cultura contemporânea com vistas à inculturação do batismo: quais ritos ajudam na construção da identidade? Qual é a relevância das comunidades virtuais para os jovens hoje? Como e onde as pessoas se encontram? Quais ritos, gestos e elementos da cultura pop são usados para marcar as passagens? Quais conteúdos são acessados na cultura pop, na cultura midiática, de consumo e quais os anseios humanos se escondem por detrás deles?

c)     Resgate do rito do batismo: Um terceiro caminho seria o resgate do sentido do rito do batismo, como rito de iniciação, em sua inteireza, para uma vivência plena através da educação continuada na fé. Como escreveu White em relação ao culto, a descoberta das raízes nos darão asas.

Nesta proposta, o batismo deveria ser assumido como fonte, princípio e norte de toda a ação pastoral da comunidade. Uma ação pastoral integral a partir do batismo, que incluiria desde questões como planejamento, orçamento, programas e todas as atividade pastorais, diaconais e litúrgicas da comunidade.

Ao assumir a tarefa de batizar a comunidade toma sobre si a responsabilidade pedagógica, proporcionando uma educação cristã que possibilite a todos viver a partir de seu batismo. Isto seria muito mais do que apenas um breve curso para pais e padrinhos, antes do batismo e mais do que o controvertido período de catequese antes da confirmação. Educação na fé não pode se limitar a uma certa idade ou a um grupo determinado.Também não pode se restringir a mera transmissão de conhecimentos bíblicos-teológicos, confessionais. É aprendizado na vivência da fé, do batismo até o fim da vida.

Para isto, se faz necessário o desenvolvimento e capacitação de equipes de apoio batismal, unindo os diferentes ministérios – pastoral, catequético, diaconal, missionário, musical – e membros da comunidade.

É preciso recuperar toda a inteireza do rito batismal: todos os significados do batismo que encontramos no Novo Testamento; elementos como a renúncia do mal e a imposição de mãos com a outorga do Espírito Santo; a oração sobre a água, a Ceia do Senhor, como parte essencial da liturgia do batismo, incluindo nela também as crianças. Tudo isto não deveria faltar no rito batismal.

Um último elemento importantíssimo a ser resgatado são os cultos de recordação dos votos batismais.[29] A recordação dos votos batismais pode evitar a prática recorrente do rebatismo, tanto para os chamados peregrinos, como para os convertidos.

“Cultos comunitários de recordação do batismo também são ocasiões privilegiadas para a comunidade acolher novos membros, pessoas que fazem uma profissão de fé, pessoas que retornam após um período de afastamento, e outras.”[30]

O resgate do rito do batismo a partir de suas raízes históricas não é garantia de um prática e de uma compreensão coesa e fixa do batismo por parte do crente moderno. Qualquer exercício por parte da instituição, por mais bem articulado que seja, não conseguirá reverter as tendências da modernidade. Ou seja, o batismo continuará entregue a fluidez moderna, que implica também em mudanças no campo religioso. O resgate do rito por parte da Igreja seria, no entanto, um fortalecimento do rito como referencial da tradição para os membros praticantes das comunidades, em primeiro lugar e, em segundo lugar, para dentro do fenômeno da cultura e da religião em movimento,  uma contribuição mais explícita, mesmo que parcial, por parte da Igreja na configuração da crença da contemporaneidade.


[1] Hervieu-Léger chama as mudanças que vem ocorrendo no campo religioso de “religião em movimento”. HERVIEU-LÉGER, Daniele. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2008.

[2] RIBEIRO, Jorge Cláudio. Religiosidade jovem: pesquisa entre universitários. São Paulo: Loyola/Olho d’Água, 2009.

[3] WHITE, James F. Introdução ao culto cristão. São Leopoldo: Sinodal, 1997. p. 153-165.

[4] “A pluralidade e fragmentação religiosa, portanto, são frutos da própria dinâmica moderna. A secularização multiplica os universos religiosos, de forma que a sua diversidade pode ser vista como interna e estrutural ao processo da modernidade. A secularização e a diversidade religiosa estão associadas diretamente a um mesmo processo histórico que possibilitou que as sociedades existissem e funcionassem sem precisar estar fundadas sobre um único princípio religioso organizador.” STEIL, Carlos Alberto. Pluralismo, modernidade e tradição: transformações do campo religioso. Ciencias Sociales y Religión/ Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 3, n. 3, out., 2001. p. 116.

[5] BERGER, Peter. Le réenchantement du monde. Paris: Bayard, 2001. p. 15

[6] “O fundamentalismo é um fenômeno inteiramente contemporâneo e pós-moderno, que adota totalmente as ‘reformas racionalizadoras’ e os desenvolvimentos tecnológicos da modernidade, tentando não tanto ‘fazer recuar’ os desvios modernos quanto ‘os ter e devorar ao mesmo tempo’ – tornar possível um pleno aproveitamento das atrações modernas, sem pagar o preço que elas exigem. O preço em questão é a agonia do indivíduo condenado à auto-suficiência, à autoconfiança e à vida de um escolha nunca plenamente fidedigna e satisfatória.” BAUMAN, S. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. p. 226.

[7] RIBEIRO, 2009, p. 77

[8] RIBEIRO, 2009, p. 79

[9] HEELAS, Paul. Introduction: Detraditionalization and its Rivals. In: HEELAS, Paul; LASH, Scott; MORRIS, Paul (Editores). De-traditionalization: critical reflections authority and identity at a time of uncertainty. Oxford/Cambridge: Blackwell Publisher, 1996. p. 2

[10] Como aponta Lipovetsky:  “[…]…compram-se marcas onerosas não mais em razão de uma pressão social, mas em função dos momentos e das vontades, do prazer que delas se espera, muito menos para fazer exibição de riqueza ou de posição que para gozar de uma relação qualitativa com as coisas ou com os serviços. Mesmo a relação com as marcas psicologizou-se, desinstitucionalizou-se, subjetivou-se. […]… uma reinterpretação global do cristianismo, que se ajustou aos ideais de felicidade, de hedonismo, de desabrochamento dos indivíduos difundidos pelo capitalismo de consumo: o universo hiperbólico do consumo não foi o túmulo da religião, mas o instrumento de sua adaptação à civilização moderna da felicidade terrestre.” LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 49; 131.

[11] RIBEIRO, 2009, p. 80

[12] HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 170

[13] BOBSIN,Oneide. Correntes religiosas e globalização. São Leopoldo: CEBI/PPL/IEPG, 2002. p. 15.

[14] HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 63-64.

[15] HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 158.

[16] BIERITZ, K.-H. Antropologische Grundlegung. In. SCHMIDT-LAUBER, Hans-Christoph; MEYER-BLANCK, Michael; BIERITZ, Karl-Heinrich (Ed.). Handbuch der Liturgik, 3. Ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2003. p. 125ss.

[17] WHITE, 1997, p. 153ss.; KALMBACH, Pedro. Bautismo y educación: Contribuciones para el actuar pedagógico comunitario. Buenos Aires: el autor, 2005.

[18] KRETSCHMAR, Georg. Die Geschichte des Taufgottesdienstes in der alten Kirche. In: MÜLLER, Karl Ferdinand; BLANKENBURG, Walter (Ed.). Leiturgia: Handbuch des Evangelischen Gottesdienstes. Kassel-Wilhelmshöhe: Johannes Stauda, 1970. v. 5, p. 342 e BRAND, Eugene. Batismo: uma perspectiva pastoral. São Leopoldo: Sinodal, 1982. p. 47-49.

[19] BRAND, 1982, p. 49.

[20] Como nos lembra Chupungco: Baptism is the original and essencial passage of the Christian. Its spirit and dynamism are renewed in other acts of passage such as the critical moment of sickness, the life-long commitment of marriage, and God’s final summons to eternal life. CHUPUNGCO, Anscar J. Baptism, Marriage, Healing, and Funerals: principles and criteria for inculturation. In: STAUFFER, S. Anita (Ed.). Baptism, Rites of Passage, and Culture. Geneva: LWF, 1998. p. 48.

[21] GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.

[22] Ver as catequeses batismais de Cirilo de Jerusalém. Também a pesquisa sobre a relação entre batismo e educação: KALMBACH, Pedro. Bautismo y educación: Contribuciones para el actuar pedagógico comunitario. Buenos Aires: el autor, 2005.

[23] COMMISSION ON FAITH AND ORDER. Becoming a Christian: the Ecumenical Implications of Our Common Baptism: Reporto f the Consultation. In: BEST, Thomas F.: HELLER, Dagmar (Ed.). Becoming a Christian: the Ecumenical Implications of Our Common Baptism. Geneva: WCC, 1999. (Faith and Order Paper, 184). p. 80.

[24] Nas Igrejas que batizam adultos, o batismo de adolecentes funciona como rito de passagem para adolescência.

[25] BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

[26] CHUPUNGCO, 1998, p. 55.

[27] WHITE, 1997, p. 204.

[28] CHUPUNGCO, 1998, p. 55.

[29] Na Igreja Antiga, as pessoas eram quase que ao natural relembradas constantemente do seu batismo. Na Primeira Apologia de Justino, o Mártir (Roma, ca. 150-155) temos uma referência a um ato de recordação do batismo: “Nós, depois disso [de terem recebido o batismo e a eucaristia, após terem sido iniciados], recordamos constantemente para o futuro entre nós estas coisas.” JUSTINO, São. Textos catequético-litúrgico de São Justino Mártir (Apologia I e Diálogo com o judeu Trifão). In: ROMA, Hipólito de. Tradição apostólica de Hipólito de Roma: liturgia e catequese em Roma no séc. III. Petrópolis: Vozes, 1971. p. 67, 1.

[30] KIRST, 2006, p. 125.

Julio Cézar Adam

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